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A boneca

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Às vezes parece que o destino não é justo na mesma medida com todos. Com ela foi assim, mas apesar disso, ela aprendeu a lidar muito bem com a diferença. Se diverte como qualquer outra da caixa de brinquedos. Para a Clara, definitivamente, não há diferença. Muito pelo contrário, essa boneca se tornou a sua preferida entre tantas outras.

Foi em 2018 que elas se tornaram amigas, nas proximidades do Natal. Aqui na minha casa, há pelo menos cinco anos, a festa natalina se inicia ainda em novembro. Isso ocorre desde que criamos o Natal da Asena, uma ação que reúne crianças do Bairro Campestre para distribuir brinquedos. Por ser a única ação desse tipo na comunidade, recebermos algo próximo a duas centenas de crianças. Para que isso seja possível, mobilizamos muitos amigos e parceiros da Associação. A garagem da nossa casa se torna a verdadeira fábrica do Papai Noel. É brinquedo para tudo que é lado, graças a generosidade de tanta gente que colabora.

Em meio a tudo isso, a minha filha se diverte ao mesmo tempo em que ajuda na organização. No último Natal, por exemplo, ela me acompanhou na coleta de doações que se espalham pela cidade. No geral, recebemos objetos em ótimo estado ou até mesmo novos. Mas nem sempre foi assim. Até 2018, ainda era comum que pessoas "desavisadas'' fizessem descarte, em vez de doação. Muitos brinquedos quebrados, sujos ou em péssimo estado chegavam até nós. O trabalho se tornava dobrado, para selecionar o que era digno de ser entregue a uma criança.

Por se tratar de uma periferia, lugar em que a falta é regra, achamos certo entregar o melhor possível sempre. Neste sentido, o padrão de seleção dos brinquedos é rigoroso. Mas por ironia do destino, foi justamente na caixa de descarte que Clara encontrou a boneca. Sem que ninguém percebesse, a boneca foi retirada da caixa para ganhar vida em seu colo. Junto a esta boneca havia carrinhos sem roda, teclados sem tecla e até mesmo livros riscados ou faltando páginas. O que supostamente fez a boneca parar na caixa de descarte, foi o fato de não possuir as pernas. Em meio ao que realmente era lixo (ou material reciclável) ela foi parar. Invisível para os adultos por não ter as pernas, a boneca foi salva pelo olhar da criança.

O Natal chegou, comprei para a minha filha outra boneca e ela ganhou de sua mãe e avós mais brinquedos novos. Tudo isso não diminuiu em nada o seu interesse pela boneca "sem pernas''. Bem na verdade, aos olhos da Clara era notável que não havia diferença. Ao perceber isso, entendi que o adjetivo "sem pernas'' deveria ser removido do meu vocabulário. Certo dia, fomos no aniversário de uma amiguinha da Clara e, para o meu espanto, ela disse que levaria a boneca.

Naturalmente pensei que, se permitisse isso, eu seria julgado na festa. Afinal, que tipo de pai não se compromete em dar uma boneca nova e "completa'' a sua filha? A boneca foi junto conosco, mas chegando na festa eu convenci a Clara a deixá-la no carro, "dormindo''. A minha estratégia deu certo, me escapei do suposto constrangimento. Porém, não consegui fugir das reflexões que borbulhavam na minha mente. No caminho de volta, cheguei a uma conclusão: a boneca iria conosco para qualquer lugar a partir de então, como qualquer outro brinquedo. Percebendo a relação de carinho e amizade entre a minha filha e a boneca, passei a incentivar isso, inclusive. Para atingir essa mudança de atitude, precisei fazer um movimento interno. Isso só foi possível, graças ao olhar de alteridade da minha filha diante da boneca "sem pernas'' - diante da boneca.

No fundo, a história parece besteira. É só uma boneca, alguns podem pensar. Mas, definitivamente, não é. Para além dos nossos caprichos sobre o consumo demasiado, de querer sempre o novo, algo aprendi. Em nossa sociedade ainda é natural julgar o diferente. Uma herança social que carregamos, mesmo que de forma inconsciente. Se tenho muitos amigos portadores de necessidades especiais, por que a minha filha precisa se envergonhar da sua boneca? Talvez alguma mudança neste sentido já começou entre adultos. Mas precisamos avançar. Por sorte, as crianças já nascem prontas para amar de forma abundante e generosa. Resta-nos não atrapalhar isso e, quem sabe, aprender com elas sobre o verdadeiro amor incondicional. Em tempos de tanta intolerância, que possamos amar o diferente.

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